sábado, 14 de fevereiro de 2009

A arte de humilhar - Marta Medeiros..


Eu detesto ver as pessoas pagando mico, detesto estes programas de TV que fazem "HUMOR" usando situacoes que causam constrangimento.

Li um artigo da Marta Medeiros, que eu adoro, falando sobre isso, transcrevo pra voce.



MARTHA MEDEIROS - 14/02/2009
A arte de humilhar
Não sou de andar com a cara fechada, pelo contrário: meu nível de humor é bastante razoável. Gosto de rir, sou leve, acho graça na vida. O que não quer dizer que ache graça de tudo. Nunca engoli, por exemplo, aquelas tais pegadinhas que foram febre na tevê anos atrás, em quadros que se inspiravam no Candid Camera e eram transmitidos em programas dominicais, em especial os do Silvio Santos. Me sentia constrangida ao ver pessoas humildes sendo feitas de trouxa.
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Humilhação nunca me divertiu. Havia quem defendesse esses quadros, dizendo que os participantes autorizavam a veiculação da cena por livre e espontânea vontade. Não é bem assim. Eles autorizavam porque era a única chance de aparecer na televisão, o que é muito sedutor para quem nunca teve nem terá a chance de colocar o rosto na telinha de outra forma. Recebiam um cachezinho merreca e pagavam mico em rede nacional.Agora a coisa se sofisticou. Pegadinhas não são mais feitas apenas com transeuntes na rua: as celebridades entraram no alvo. Poucos anos atrás, uma emissora britânica pegou Tom Cruise. Ele dava uma entrevista sobre o filme Guerra dos Mundos, quando do microfone saiu um jato de água que molhou seu rosto e parte da roupa. Quá, quá, quá. Hoje tem marmelada? Tem, sim senhor. No circo, funciona. No meio da rua, fazendo Tom Cruise de palhaço, funciona mais ainda. Há quem chame isso de brincadeira.Quando é com os outros, claro. Brincar é uma coisa, humilhar é outra bem diferente. Infelizmente, são poucos os que pensam assim, ou não haveria agora essa febre de programas especializados em “brincar” com celebridades, como se o fato de ser famoso obrigasse a vítima a aceitar tudo numa boa. Recentemente, o ator Wagner Moura se queixou de uma dessas brincadeiras.
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Com toda razão. Muita gente considera hilário esse tipo de programa. Eu assisti raríssimas vezes, e sempre me causou um certo mal-estar. Lembro de uma vez em que os “repórteres” estavam na entrada de um local onde acontecia uma festa com presença maciça de artistas globais. Eles impediam a passagem dos carros e só saíam da frente se os convidados abrissem o vidro para responder algumas perguntas. Sem alternativa, os célebres rendiam-se àqueles xaropes e eram alvo de um festival de grosserias e chacotas. Quem mandou serem ricos, famosos e bonitos? O pedágio: pegação no pé. Com direito a ouvir ofensas e achar tudo muito natural.Não consigo entender qual é a graça de fazer as pessoas de bobas, de agredir pra não perder a piada, de abusar da paciência dos outros. Torço o nariz até para aqueles que, durante uma peça de teatro, escolhem alguém da plateia para fazer de pato, e olha que é um recurso cênico legítimo e utilizado no mundo todo. Tenho muitos amigos atores e quando sei que a peça recorre a esse tipo de “brincadeira”, eu vou, mas não aviso que estou na plateia e sento na última fila.
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Ok, até o Cirque du Soleil recorre a esse expediente, mas nem todo mundo têm obsessão por aparecer sob um holofote: há os que acham muito bom ser plateia e nada mais que plateia, sem nenhuma fantasia de subir ao palco. Qual o problema de deixar esses de lado? Ah, mas azucrinar os tímidos é que tem graça! Óbvio. Talvez eu tenha mesmo algum distúrbio de humor, só sei que o mundo tem sido muito ingrato com os discretos.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

SC PÓS ENCHENTE - URDA ALICE KLUEGER

SANTA CATARINA PÓS ENCHENTE. Um relato indignado!
Urda Alice Klueger - Escritora e historiadora
Ontem minha cidade de Blumenau foi diferente. De repente, saído de todos os seus esconsos, uma população inteira de desvalidos saiu e até fugiu dos abrigos públicos mantidos nas escolas do município, e veio para praça pública. Quem era essa gente? Eram os trabalhadores de Blumenau, aqueles que passaram grande parte das suas vidas trabalhando para fazer a sua casinha, e que a construíram, a pintaram, a muraram, fizeram jardins, esticaram redes nas varandas para melhor poder conversar com suas mulheres ao por do sol, que nelas criam ou já criaram seus filhos, que tinham aqueles lugarzinhos bonitos, com cortinas na janela e roseiras perto da cerca – e que de um momento para o outro viram a terra desmilinguir, virar gelatina se liquefazendo, e suas casas irem embora dentro de mares de lama, tantas vezes levando junto entes queridos ... e que acabaram nos abrigos públicos de que já falei acima.Eu fiquei tão perdida no tempo desde que tudo começou que já não sei desde quando eles estão lá (e eu estou aqui, pois também sou uma desalojada), mas sei que foi logo a seguir do dia 20 de novembro. 21? 22? 23? Já não sei, e também não importa o dia, pois dia se emenda em dia(...)O Brasil e o mundo mandaram tantos donativos para cá que ficará difícil gastar tudo, mas alguém fica com muita coisa no meio do caminho. Sei de um abrigo onde há mais de mil sabonetes amontoados numa sala, mas que a pessoa que coordena o abrigo não dá sabonete para determinado abrigado que dele necessita, porque não lhe tem simpatia pessoal. E eu sei bem o quanto esse desabrigado é útil ao seu abrigo; como trabalha, ajuda, limpa, prepara comida ... que será que leva essa chefia de abrigo a ter tanta antipatia? Será que é porque não são da mesma etnia? Olhem os guetos se formando na Europa Brasileira!As histórias são inúmeras, desde aquele sargento que, faz poucos dias, proibiu a carne para os adultos de determinado abrigo, liberando-a só para as crianças – quando todos sabem que há um congelador chapadinho de carne lá na cozinha, que veio das tantas doações que todo o país mandou. E as roupas sujas de menstruação que se deram às pessoas do abrigo tal, para que as usassem (nada havia sido salvo das suas casas), enquanto gente do Brasil inteiro mandava roupas novinhas novinhas... Começa a pergunta: quem ficou com tantas coisas? E um diretor de escola que resolveu tratar logo os abrigados como porcos: picou aipim com casca e tudo, e misturou um bocado de carne, e sem sal, sem tempero, sem preparo, cozinhou aquela gororoba e só não mandou servir em gamelões porque deve ter ficado com vergonha. E outro diretor de outra escola, que se sente o dono do abrigo (a escola é publica, construída com legítimo dinheiro do contribuinte, e o diretor é um funcionário público, com o salário pago com os impostos daquela gente que está lá desvalida) e que não permite coisas básicas, como pais que vêm de longe para saber a sorte dos filhos, e sequer podem entrar lá para falar com os mesmos... e um outro chefe de abrigo, que vergonhosamente faz com que cada abrigado seja revistado pelos soldados lá de plantão, mesmo que o abrigado tenha apenas ido até à esquina comprar um pão.A lista das humilhações e falta de respeito é tão grande que nem pensaria em tentar coloca-la aqui. Mas taí uma amostra. E mesmo assim, esses trabalhadores da minha cidade terão que deixar o abrigo dia 30.01. Muitos e muitos já acabaram desistindo dos maus tratos e das humilhações e indo para a casa de amigos, ou voltando para as zonas de risco, assinando documentos em que se declaram auto-responsáveis pelo que vier acontecer, caso algo lhes acontecer nas zonas de risco. Eles têm que se ir, sumir; a vida nos abrigos tem que ser a pior possível, para que os moradores desistam, sumam das estatísticas – é bem diferente construir mil casas do que cinco mil casas – sobra um dinheirão para os bolsos não sei de quem.Pois é, gente, deve ser por aí. Sei de algumas coisas: o Governo Federal colocou 1 BILHÃO e 700 milhões de reais à disposição dos atingidos – é um dinheiro ENORME. Sei que tal dinheiro abrange, também, construção de pontes, rodovias e correlatos, mas sobra MUITO dinheiro para construir casas para os nossos trabalhadores. Parte será emprestada através de financiamentos, mas parte também será repassada a fundo perdido. E nada se faz. E o dinheiro que o santo povo brasileiro tirou do seu bolso, do seu contadinho, e mandou para cá? Cadê tal dinheiro? Era dinheiro para o povo, assim como as outras doações eram para o povo – e sei que tem gente jogando caminhão de doação em beira de estrada porque já não há onde guardá-la. E o meu povo, a minha gente trabalhadora e construtora de Blumenau, a comer lavagem de porco e a usar roupas sujas de menstruação e a não ter acesso a sabonetes, onde há muitos milhares esperando para serem usados? Então ontem o povo foi para a praça, foi pedir explicações e justiça. Eu estava lá de três formas: como observadora, pois sou uma escritora; como militante dos Movimentos Sociais, e como desalojada também. Havia centenas de pessoas diante da prefeitura pedindo justiça, e o prefeito fez o que é de praxe em tais horas: sumiu, se escafedeu. Mas aceitou marcar uma audiência para a próxima terça.Toda essa gente merece satisfação: desde aquele humilde baiano que vi na televisão, depositando o seu troquinho de quem ganha salário mínimo, até aqueles que fizeram grandes doações – como também os nossos trabalhadores, os mais espoliados dos espoliados. É hora de obtermos respostas, e muito rapidamente. Eu, por exemplo, fiz meu cadastro de desalojada no dia 16.12.2008 – mais de mês, portanto. Deixei lá o endereço onde estou, o telefone, o endereço eletrônico – e até este momento nem uma vezinha alguém me disse a mínima coisa. Imagino que alguém ao menos deveria dizer: “há que esperar o final das chuvas para se fazer alguma coisa. A senhora, por favor, tenha paciência!” – mas nem isto.Se não dão satisfação a mim, conhecida como escritora bocuda, que publica em diversos continentes, o que algum dia dirão aos trabalhadores que constroem esta cidade? Decerto dirão algo assim:Sai daqui! Passa! Ligeiro! Senão vai ter cadeia! Seus arruaceiros! E aquelas pessoas que doaram, e doaram, e doaram... estava na hora de alguém contar como as coisas se passam.Blumenau, 23 de janeiro de 2008.